domingo, 11 de dezembro de 2011

As novelas que você nunca viu (Assim funciona a fabrica de ilusões)

Aline Massuca/Valor / Aline Massuca/Valor
Alexandra Martins e Julia Lemmertz gravam "Fina Estampa": detalhes milimétricos têm que ser respeitados por todos os envolvidos na produção de uma novela

Preste atenção: as roupas usadas nas tramas das telenovelas da Rede Globo nunca têm a aparência de que acabaram de sair da loja. Com raras exceções, como os vestidos de noiva. Para que passe essa impressão, cada peça precisa ter o que a figurinista Beth Filipeck chama de visual com "mais tempo de vida". Assim, são lavadas com uma substância que tem tonalidade cinza, secadas e passadas para convencer o telespectador de que o figurino faz parte de um mundo real, palpável e próximo. Há outros detalhes mais perceptíveis, mas dos quais o público não desconfia. Como a Galeria do Rock, cenário na recente "Tempos Modernos". Muita gente queria saber em que horário eram feitas as gravações - nas madrugadas ou aos domingos? Nada disso. A cenografia construiu uma réplica do centro comercial alternativo paulistano. Absolutamente todas as fachadas das lojas foram reproduzidas, com seus acervos de discos, camisetas, sapatos etc.

A perfeição nos cenários da Globo impressiona e só tocando com as mãos se percebe que os objetos não são de verdade. Aliás, como um truque de mágica, os olhos são traídos mesmo quando se passeia pelas ruas das cidades cenográficas e até quando se entra numa quitanda ou farmácia. Se pela televisão tudo parece convincente, o realismo não é menor ao vivo. Tudo é ilusão de ótica, como numa pegadinha de TV. Chegue a 30 centímetros das paredes e você continuará a acreditar que são reais. Só ao dar um toque-toque nelas se convencerá que não passam de madeira pintada.

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Beth, há 30 anos na Globo: figurino que tenta dar harmonia a personagens

Na vila da novela "Aquele Beijo", que estreou na semana passada, a rua que leva à favela está propositadamente suja, com velhas bicicletas largadas nas calçadas. Panfletos envelhecidos ameaçam se soltar das paredes. Anunciam a vidente picareta interpretada por Claudia Jimenez. Na quitanda da esquina, mandiocas à venda parecem suculentas. Mas basta pegar uma para ver que é de plástico, assim como os pimentões e a penca de cocos na banca em frente - feitos com espuma e cobertura plástica. Uma gigantesca parede azul ao fundo jamais aparecerá na tela da TV porque será substituída pela imagem estática que dará a impressão de que uma extensa rua existe ali.

Tudo é pensado para que o público seja enganado. Com a melhor das intenções, claro: identificar-se com os dramas, sonhar, desejar e se emocionar. Perfeição e obsessão caminham juntas na Central Globo de Produção (CGT) - mais conhecida como Projac (Projeto Jacarepaguá). Cada vez mais por causa da tecnologia de alta definição, que permite ao telespectador ver até "sexo de inseto", como se diz por lá. E uma TV em HD é possível ver manchas na parede ou detalhes de uma maquiagem malfeita. No caso dos cenários construídos nos estúdios, fica difícil entender a engenharia, mas todos são desmontados diariamente. Não interessa se na manhã seguinte será gravado algo ali. A lógica é simples: a remontagem exige pinturas e retoques diários, que deixam tudo mais "vivo". Esse profissionalismo mantém a Globo uma referência mundial em teledramaturgia, o maior e mais importante negócio da TV brasileira, que movimenta bilhões de reais por ano e faz as concorrentes como SBT e Record investirem pesado no segmento.

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O contrarregra Malvino: há quatro décadas de olho nos mínimos detalhes

Muita coisa mudou desde que "Sua Vida me Pertence", a primeira telenovela brasileira, foi ao ar há 60 anos. Hoje, cada capítulo custa, em média, R$ 450 mil, num valor total que pode ultrapassar os R$ 80 milhões, mas chega a render, no horário nobre, mais do triplo. O gigantismo do Projac também vai na contramão de uma suposta crise de renovação da telenovela, que seria o reflexo da queda na audiência nos últimos 20 anos. E um dos argumentos contrários diz que, se não é mais tão marcante e inesquecível como no passado, o folhetim continua a interferir na moda, no comportamento e até no gosto musical dos brasileiros.

Os produtos da Globo são vendidos para mais de cem países, nos cinco continentes. As novelas mais comercializadas são "Da Cor do Pecado" (100 países), "Terra Nostra" (95) e "Caminho das Índias" (90). O principal cliente é a portuguesa SIC, que exibe todas.

Inaugurado há 16 anos, o Projac ocupa área de 1,65 milhão de m2, onde só é possível circular em carrinhos parecidos com os da série "A Ilha da Fantasia" - uma frota de 204 veículos. Todas as etapas de produção são integradas - pré-produção, gravação, pós-produção e atividades de infraestrutura - e resultam todo ano em 2,5 mil horas de programação - equivalentes a cerca de 1,2 mil filmes em longa-metragem. São seis estúdios de 1 mil m2 e quatro de 560 m2, mais sete módulos de produção e departamento industrial, restaurantes, informática, recursos humanos, planejamento e controle de engenharia.

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A cenógrafa May: exercício de desapego ao ver um cenário ser destruído

Para se ter uma ideia, só em 2009 foram produzidas 60 mil peças cenográficas e 17 cidades cenográficas. Por ano, são 64 toneladas de pregos e 360 mil litros de tinta à base de água. Os 9 mil m3 de madeira usados tiveram certificação do Ibama. O acervo de figurinos soma 280 mil peças. E, se precisar filmar fora dali, existem oito unidades móveis de produção, com 16 câmeras cada uma. Tudo isso é mantido por seis mil funcionários, prestadores de serviço, elenco e figuração. Só o restaurante central serve cinco mil refeições diariamente - são quatro unidades, mais três lanchonetes e seis bufês. Seu consumo mensal de energia é suficiente para abastecer uma cidade de 70 mil habitantes. Cada novela conta com 160 cenários de estúdio, refeitos três vezes, o que dá um total de 480 unidades.

Visitar o Projac é uma oportunidade rara. Não existe tour. O acesso da reportagem ao local exigiu semanas de negociações - e restrições. Fotos, nem pensar na maioria dos locais e entre funcionários. Como mostrar uma retroescavadeira destruindo de modo implacável a "cidade" de "Cordel Encantado". O som da madeira quebrada parece de ossos sendo triturados. "É para não tirar a magia do público", diz a vigilante assessora de imprensa. Sim, tudo a ver. Mas a questão vai além. O Projac é como a Casa da Moeda ou a central da Coca-Cola, cuja fórmula é guardada num cofre: tem muita gente interessada em saber o que e como são feitas as coisas lá dentro.

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Rua de novela: equipe faz plantas e maquetes em 3D da cidade cenográfica

Marcelo Guerra, diretor de infraestrutura, é uma das pessoas que fazem aquele misto de parque de diversão e galpão de escola de samba funcionar. Há 16 anos na Globo, está há 3 na infraestrutura. Antes, ocupou o posto de diretor de orçamento e controle da CGP. É o responsável por compras, serviços, manutenção e segurança do Projac, com uma equipe aproximada de 2.300 colaboradores. A área tem dois grandes focos de atuação: o complexo propriamente dito e o apoio à produção, com suas características específicas e necessidade de resposta ágil e flexível. "Nos primeiros anos, o desafio foi viabilizar as operações de infraestrutura em um lugar novo que era, na prática, a consolidação dos vários endereços em que a CGP funcionava [emissora, Teatro Fênix, Globo Tijuca, Tycoon, Renato Aragão e Cinédia]. Como o foco era o atendimento às atividades de produção, os serviços tiveram que ser desenhados e implementados com esse cuidado." Como diz Guerra, para dar certo, é necessário ser dinâmico e organizado.

Muitos funcionários da Globo têm até quatro décadas de casa. Como o contrarregra Roberto Malvino, de 55 anos, 39 deles na emissora. Seguiu os passos do pai, que ajudou a fundar o canal, em 1964, um ano antes de o sinal Globo ir ao ar. Desde "Os Ossos do Barão" (1973), empenha-se para que não falte detalhe à gravação. "O Projac é uma maravilha. Antes, não havia transporte interno, tudo era manual. Ficou mais ágil." Malvino é um dos oito contrarregras de cada novela - a das 21 h tem dez. Agora, faz "Vida da Gente", das 18 h. Guarda histórias dos imprevistos. Uma que gosta de contar é antiga. Em 1978, quando "Sítio do Picapau Amarelo" era gravado em Guaratiba, improvisou uma sopa e usou tudo o que havia disponível. Servida quente ao elenco durante o jantar, todos adoraram. "O ator tem de confiar no contrarregra porque todo tipo de comida tem de passar por nós e fazemos sempre o melhor possível." Ele mantém perto micro-ondas e garrafas com café quente para que a fumacinha suba da xícara quando se vê de casa.

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Perfeição na caracterização: até de muito perto tudo parece de verdade

Não menos curioso é o departamento de figurinos. Cada personagem tem cerca de 200 peças de roupa cuidadosamente pensadas, da lingerie aos sapatos e bolsas. O de "Fina Estampa" está sob a responsabilidade de Beth Filipeck, figurinista da emissora há 30 anos, que também dá aula de teatro - figurino e cenografia. Beth comanda uma equipe de 30 pessoas. "A novela na nossa cultura é muito de o telespectador se projetar nos personagens e o figurino tentar dar uma harmonia". O desafio agora é vestir a personagem de Lilia Cabral, Griselda, que ganhou na loteria e precisa mudar o guarda-roupa. "Ela fica rica, mas não vira uma perua, é popular, muda gradativamente." Assim que a novela termina, como ocorre com todas, as peças são levadas para o acervo - vão ser usadas por figurantes em outras tramas.

A cenógrafa May Martins cuida, no momento, da elaboração dos cenários de "Louco por Elas", seriado de João Falcão dirigido por Flávia Lacerda que deve estrear no ano que vem. Na Globo há 32 anos, ela conta que sua função, na fase inicial, a partir da sinopse, é pensar em como vestir o imaginário de uma novela, série ou minissérie na parte física. "Faz-se muita pesquisa, às vezes em pouco tempo", observa. A maioria de sua equipe tem formação em arquitetura. Ao fim, tudo tem que ser destruído ou readaptado para outras produções. "Não tem problema ver a demolição de uma cidade cenográfica. O exercício do desapego vem desse entendimento de prestar um serviço ao telespectador, de contar uma história", comenta, ao mostrar as plantas e maquetes em 3D construídas na fase inicial de cada produção.

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Nada está ali por acaso: cena recebe retoques diários para ficar mais "viva"

Não há castas e privilégios no esquema do Projac. Existem, sim, algumas condições para os atores se concentrarem e decorar os textos. Todos comem nos mesmos restaurantes e mesas com os demais empregados. Predomina a ideia de que cada função é uma peça importante no funcionamento de uma grande engrenagem. Desde o garoto que faz as fotocópias e distribui os roteiros até o marceneiro que retoca o cenário, o cameraman ou responsável pelos efeitos visuais e acabamento de um capítulo. Tudo isso torna emocionante ver, no set, a gravação de duas cenas - com Julia Lemmertz, Dan Stulback e Alexandra Martins - do capítulo 45 de "Fina Estampa". Os três são orientados por uma voz em volume alto, onipresente e com autoridade, que diz exatamente o que cada um deve fazer. Da marcação das cenas à posição do celular perto do rosto.

Os detalhes, com precisão de milímetros, devem ser respeitados. "Dou sorte, os grandes atores sempre me ajudam e a gente aprende muito", conta Alexandra. Minutos depois, descobre-se que quem comanda o estúdio é o diretor Ary Coslov, sujeito de grande doçura e educação. "Estamos presos a coisas técnicas e humanas, mas tudo funciona porque é uma engrenagem azeitada", afirma.

Cerca de 6,5 mil pessoas circulam por dia pelo Projac. Chama a atenção a quantidade de figurantes - é proibido conversar com eles -, a maioria jovens em busca de uma chance. Não é fácil e tudo exige paciência e dedicação. Sorte também conta. Mesmo para quem jamais imaginou que apareceria em horário nobre, às 21 h. Como aconteceu com garçom Antonio Kelis de Castro, 48 anos. Por atender sempre Marcos Schechtman, diretor-geral de "Caminho das Índias" (2009), de Gloria Perez, foi convidado a participar como garçom, porque sua pele "combinava com a de um indiano". No ano passado, participou de "Malhação". Ele continua fazendo o seu trabalho e à espera de novos convites. Deixa a impressão de que, quando se está no Projac, qualquer desejo é possível.

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